Maioria Crianças, nas Salas de Cirurgia
Imagine um homem que, sob a fachada de um profissional respeitado, transformou salas de cirurgia em cenários de pesadelo. Joël Le Scouarnec, um ex-cirurgião francês de 74 anos, enfrenta hoje um julgamento que expõe não apenas seus atos monstruosos, mas também as falhas de um sistema que permitiu que ele operasse por décadas sem ser detido.
Ele é acusado de abusar sexualmente de quase 300 pessoas, muitas delas crianças vulneráveis, frequentemente enquanto estavam inconscientes, sedadas por anestesia em hospitais do oeste da França. O que torna esse caso ainda mais perturbador é a frieza com que ele registrava cada atrocidade: em cadernos pessoais, como um colecionador mórbido, anotava nomes, idades e detalhes dos abusos, transformando suas vítimas em troféus de uma obsessão doentia.
Os crimes, que teriam ocorrido entre 1989 e 2014, abrangem um período em que Le Scouarnec trabalhou em diversos hospitais, aproveitando-se de sua posição de autoridade e da confiança depositada nele por pacientes e colegas.
A idade média das vítimas, 11 anos, reflete a crueldade direcionada aos mais indefesos, incluindo casos extremos como o abuso de um bebê de apenas um ano e até uma pessoa idosa de 70 anos. Ele não discriminava idade ou gênero, mas parecia encontrar nas crianças anestesiadas o alvo perfeito para suas ações perversas, muitas vezes cometidas na própria mesa de operação ou durante a recuperação pós-cirúrgica.

O que diferencia esse caso de outros escândalos é a documentação obsessiva do próprio acusado. Esses cadernos, descobertos em 2017 após uma denúncia de estupro contra uma vizinha de seis anos, foram a chave para os investigadores. Folheá-los era como abrir um portal para a mente de alguém que não apenas cometia os atos, mas os celebrava em segredo.
Ele escrevia sobre si mesmo como um “pedófilo” perseguido, sem demonstrar remorso, e mantinha registrados os nomes e detalhes de suas vítimas, permitindo que as autoridades reconstruíssem um histórico de terror que se estendia por mais de duas décadas.
O julgamento, iniciado em 24 de fevereiro de 2025 no tribunal de Vannes, na França, é considerado o maior caso de pedofilia da história do país, com duração prevista de quatro meses. Le Scouarnec já cumpre uma pena de 15 anos desde 2020, quando foi condenado por abusar de quatro menores, incluindo duas sobrinhas e a vizinha que desencadeou a investigação.
Agora, enfrenta 111 acusações de estupro e 189 de agressão sexual, crimes agravados por sua posição como médico e pela vulnerabilidade das vítimas. Se condenado, poderá receber até 20 anos de prisão – a pena máxima permitida pela lei francesa, que não acumula sentenças.
Além da monstruosidade dos atos, o caso levanta perguntas inquietantes: como alguém com uma condenação prévia por posse de pornografia infantil em 2005 continuou a exercer a medicina sem restrições? Por que sinais de alerta, como os relatos de colegas que o viam como “discreto demais” ou “atípico”, foram ignorados? Há um eco de negligência sistêmica aqui, uma falha coletiva que permitiu que o predador prosperasse.
Associações como La Voix de l’Enfant apontam o dedo para as autoridades de saúde e judiciais, acusando-as de conivência passiva ao não agirem diante de evidências que poderiam ter interrompido essa trajetória de horror muito antes. Para as vítimas, o julgamento é mais do que um acerto de contas com Le Scouarnec é uma busca por dignidade roubada.
Muitas só descobriram os abusos anos depois, ao serem contatadas pela polícia, que cruzou os registros hospitalares com os cadernos do cirurgião. Algumas relatam flashbacks desencadeados ao verem seus nomes naquelas páginas, memórias de um trauma que não sabiam carregar. Outras, ainda crianças na época, não tinham consciência do que lhes foi feito enquanto estavam sedadas.
O impacto psicológico é imensurável, e o processo, embora necessário, reabre feridas para aqueles que, por tanto tempo, viveram sem saber da verdade. Joël Le Scouarnec não era apenas um cirurgião habilidoso; era um manipulador que usava sua profissão como um disfarce perfeito.
Por trás da imagem de competência e discrição, escondia um abismo de perversão que só veio à tona quando sua aposentadoria foi interrompida por uma denúncia corajosa. Este caso não é apenas sobre um homem é um espelho para uma sociedade que precisa encarar suas próprias falhas.
Como disse uma das advogadas das vítimas, Francesca Satta, em entrevista à imprensa francesa, ele “desfrutou da impunidade do silêncio” por tempo demais. Agora, esse silêncio foi quebrado, mas o preço pago por tantas vidas marcadas jamais poderá ser reparado.